Dezembro 2019
Texto Ana Rita Costa, Distribuição Hoje
“40% do plástico vem de embalagens e décadas de foco na reciclagem provaram que este sistema é altamente falível"
Ana Salcedo é Chief Manifestor do Zero Waste Lab e em entrevista à DISTRIBUIÇÃO HOJE conta porque acredita que “o ambiente está a tornar-se no novo aliado do marketing” e porque é que a luta contra a descartabilidade precisa de vozes mais audíveis e gestos mais visíveis.
Defende que a lógica de descartabilidade associada ao consumo é um problema que precisa de solução urgente e desafia o grande retalho a iniciar “uma revolução” para eliminar o descartável dos produtos de uso diário. A reciclagem foi o mote para uma conversa com Ana Salcedo, ativista e uma das fundadoras do Zero Waste Lab, que assume que em matéria de gestão de resíduos “não há respostas fáceis”.
O Zero Waste Lab nasceu do programa de Liderança Criativa da THNK Lisbon, como resposta a um desafio lançado pela Câmara Municipal de Lisboa para perceber como podemos reduzir os resíduos urbanos. Já têm resposta para este desafio?
Infelizmente, não há respostas fáceis nem rápidas, porque o tema dos resíduos, particularmente os plásticos, requer uma reavaliação profunda da cultura de consumo e de conveniência que é transversal a toda a sociedade e, como tal, tem de assentar num sentido de responsabilidade partilhada por todos. No entanto, porque também é uma questão altamente democrática, porque nos toca a todos, qualquer um de nós é capaz de fazer imensas mudanças na sua vida, enquanto consumidor, e influenciar tantos outros nos níveis de responsabilidade que ocupa, seja ao nível da família, do bairro, de uma empresa, de um governo.
A União Europeia prepara-se para banir a utilização de plásticos descartáveis em todos os Estados-membros já em 2021. Muitas marcas estão a antecipar a aplicação desta medida com a oferta de produtos em materiais alternativos, sobretudo, em papel. O papel é mesmo um material mais sustentável do que o plástico?
O papel não é obrigatoriamente uma solução melhor, porque em muitos casos vem recoberto de uma película de plástico que vai dificultar ou mesmo impossibilitar a sua reciclagem (pensando em copos de café, por exemplo). E uma corrida generalizada ao papel, mantendo a lógica de descarte, só vai deslocar o problema, porque o papel vem das árvores e a destruição de florestas já está em níveis incomportáveis. A solução não está na substituição. É aliás aí que reside um grande perigo. É preciso, sim, combater o descartável e usar esta proibição como uma oportunidade para realmente repensar como conseguir ir às compras, beber uma bebida ou vender um alimento sem gerar resíduos e sem descarte de embalagens, nessa lógica do lixo zero e da responsabilidade partilhada.
A DIABOLIZAÇÃO DO PLÁSTICO
O plástico tem sido apontado como o grande culpado da crise ambiental. É o único?
O plástico não é o monstro. Permitiu avanços importantes na ciência, na medicina, nos transportes, na tecnologia… É o mau uso e abuso que se faz dele, alimentando uma cultura de consumo e descarte fáceis, onde a responsabilidade é toda passada para o consumidor, que tem de reciclar, e uma indústria extrativa de petróleo feroz, que alimenta esta cultura de consumo e uma lógica de mercado de crescimento constante. 40% do plástico vem de embalagens e décadas de foco na reciclagem provaram que este sistema é altamente falível.
O problema maior está mesmo no sistema económico, que não inclui o valor da natureza na fórmula económica e, portanto, não contabiliza a consequência ambiental, nem a nível de extração de recursos, nem a nível da contaminação ao nível da cadeia e do pós-consumo. Se a consequência fosse devidamente contabilizada no preço das coisas, muita “tralha” certamente deixaria de valer a pena existir e o plástico certamente não seria tão barato, logo não haveria este abuso na sua utilização para vender mais e mais e mais.
Outra questão pertinente é a da responsabilidade estendida ao produtor, particularmente numa economia global, onde a capacidade de reciclagem competente não é globalizada e onde também é permitido exportar resíduos para países com menor capacidade de lidar com eles, como tem acontecido com a Ásia e África silenciosamente nas últimas décadas. A legislação tem de ser muito apertada a esses dois níveis.
Acima de tudo, vivemos num loop viciado de crescimento constante num planeta finito, onde as bases de sustentação de toda a vida no planeta — a água, o ar, o solo, as florestas —estão a ser sugadas e totalmente contaminadas por serem entendidas somente como recursos, sem merecerem o devido respeito pelo papel crucial que desempenham no ciclo fundamental de regeneração de toda a vida num só planeta! Esse respeito maior tem de ser determinante e a consequência tem de estar incluída na fórmula matriz da economia, centrada à volta da vida, da natureza e da abundância.
Faz sentido termos hortofrutícolas à venda no supermercado envoltos em plástico? A grande distribuição argumenta, por exemplo, que esta é uma forma de evitar a contaminação de produtos biológicos e de garantir a higiene dos produtos.
Não conheço testes de proximidade realizados nesse sentido, mas a mim parece-me uma negação simplista. Acredito que haja contaminação se os biológicos, por exemplo, estiverem na mesma zona que os alimentos produzidos com pesticidas e outros contaminantes. No entanto, não será mais um desafio de logística? Não será possível evitar a contaminação se houver uma reorganização de espaço em termos de armazém e disposição no supermercado, colocando ambos em pontos opostos, de forma a não precisarem de embalagem individual de plástico?
Os plásticos biodegradáveis podem ser uma solução?
< br /> Somente se forem realmente biodegradáveis em condições naturais em tempos mínimos, ou seja, compostáveis, num compostor caseiro, ou diluíveis em água, e para isso também não podem ter tintas contaminantes e afins. A maioria dos biodegradáveis que andam por aí só se degradam em condições de compostagem industrial e, por exemplo, em Portugal, julgo que só existe um compostor desses. Portanto, na mesma lógica do papel plastificado, é uma solução que desloca o problema para outras esferas: não existe tecnologia totalmente disponível para tratar, não existe linha de separação adequada para os distinguir dos plásticos normais, nem podem ser colocados com os orgânicos. Somente opções que possam ser colocadas juntamente com orgânicos num compostor caseiro, ou que sejam realmente solúveis em água sem contaminantes, deveriam poder chamar-se de biodegradáveis – degradáveis na natureza, no ecossistema vivo.
UMA QUESTÃO DE DESIGN E MARKETING
Recentemente, entrevistei uma especialista em ecodesign que me dizia que a reciclagem veio normalizar o desperdício. Concorda com esta ideia?
De certa forma sim, porque vem bem encaixada neste sistema de perpetuação do consumo.
Estamos sempre a ouvir: deita fora que é mais barato comprar um novo. Deitar fora descarta a responsabilidade, mas nem existe fora, nem a reciclagem resolveu os problemas. Para as marcas, também era mais fácil e barato pagar uma percentagem para que a reciclagem lidasse com o fim de vida dos seus produtos do que assumir uma responsabilidade maior que, obviamente, pesa mais no bolso. Hoje em dia, a maioria das peças não são feitas para durar, nem desenhadas para poderem ser reparadas. E esse é um problema gigante. Fala-se muito de ecodesign, mas vê-se pouco na prática, principalmente nessa vertente fundamental do design modular que permita a reparação e substituição de peças estragadas, com facilidade. Qualidade, reparabilidade e longevidade são fundamentais para a sustentabilidade e para diminuir o desperdício.
A reciclagem também pecou ao fortalecer-se, ao longo de décadas, da ideia do lixo como fim de vida e não valorizar o resíduo como recurso para continuidade de vida de um produto, a ser estimulada.
E ainda há buracos negros significativos na reciclagem — tudo o que é plástico e não são embalagens. O que fazer a brinquedos, a material de escritório, a mobiliário, a vestuário de poliéster?
A “guerra” ao plástico não veio também criar a oportunidade para que algumas empresas façam “greenwashing”? De que forma se pode educar os consumidores para distinguir práticas verdadeiramente sustentáveis de estratégias de marketing que apenas fazem com que uma empresa pareça mais “eco‑friendly” do que na realidade é?
Absolutamente. O ambiente está a tornar-se o novo aliado do marketing, em vez do contrário. Não é com mais 10% de plástico reciclado na embalagem que uma marca vai resolver o problema da embalagem. Nem é na lógica da compensação, tão presente no mundo corporativo: poluo, mas depois planto árvores e apoio projetos sociais.
Não nos devemos contentar com pouco e devemos procurar opções que realmente eliminem processos poluidores. As pessoas também têm imenso poder para pressionar as marcas a melhorar. Enviem e-mails! Não chegam comentários e shares no Facebook. Ativismo é fundamental.
O que é que ainda falta fazer para diminuir a produção de resíduos? Há vários estudos que mostram que a grande maioria do desperdício começa na casa dos consumidores.
Do lado do consumo, é necessário reforçar que não existe deitar fora e que cada vez que compramos um produto estamos a votar com a nossa carteira (eu concordo com determinada marca, então é fundamental um voto consciente) e que, em vez de apontarmos constantemente a culpa aos outros, devemos olhar para o que podemos fazer do nosso lado. Cada pessoa é importante e, no somatório de 8 mil milhões de pessoas no planeta, cada decisão pesa. E aqui entram os R: Repensar, Recusar, Reduzir, Reutilizar, Reparar e, só no final, Reciclar.
Há uma componente muito comportamental que requer uma mudança de atitude geral, de responsabilidade partilhada, em que todos temos um papel importante a cumprir e temos de fazer um esforço maior todos os dias, e aí sim afeta os consumidores. Cada vez mais cresce o MovimentoLixo Zero e aparecem mais lojas a granel, produtos de maior qualidade e sem embalagens e um push forte para consumo menos impulsivo e mais consciente. Mas ainda é marginal.
Precisamos de uma revolução ao nível do grande retalho e, para isso, inovação concertada e corajosa ao longo de toda a cadeia para levar o granel ao grande retalho, e conseguir eliminar o descartável dos produtos de uso diário, dos detergentes à alimentação, podendo inclusive representar uma diminuição de custos e uma revolução ao nível da criatividade na comunicação. Plástico descartável está em todas as prateleiras de supermercado e lojas de produtos em geral e, enquanto não existirem opções de compra que os evitem na base, não podemos apontar o dedo só aos consumidores.
Outra questão urgente é a compostagem acessível a todos, sendo que os orgânicos representam cerca de 40% do desperdício, que tem o potencial de virar solo fértil, tão fundamental para reavivar os solos destruídos pelo abuso de fertilizantes e pesticidas tóxicos. Está a caminho, mas demasiado lento no nosso país. Na natureza, a nossa maior escola, não existe desperdício, tudo o que não serve a um serve de alimento ao outro. É essa lógica que tem de nos guiar como objetivo e é esse o sentido por trás do Movimento Lixo Zero.
É possível ser ambientalmente sustentável e, ao mesmo tempo, economicamente sustentável?
Provavelmente [vai implicar perda de lucratividade], se numa ótica da competição e de cada empresa olhar para si mesma. Mas acredito que se as empresas colaborarem não só sectorialmente, mas também ao longo de toda a cadeia, poderão encontrar soluções económicas e ecológicas. Têm é de ser realmente mudanças estruturais. Vemos muitas empresas a avaliar e medir a recetividade à mudança ao lançarem mais um produto novo com características mais eco-friendly num mercado saturado de opções. E quando as vendas desse produto não são realmente significativas, dizem que o consumidor não está interessado. Mas esta é uma versão muito simplista da questão, que é muito mais profunda do que um só produto melhor que o outro. Por outro lado, há novos modelos de negócio que comprovam que é possível ser economicamente sustentável e estar do lado da solução. É preciso é coragem, experimentação e visão de longo prazo.
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